sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Misty Fest: Peter Hook ao vivo no CCB, Lisboa




A partir de "Shadowplay" foi sempre a subir: público e banda em celebração da música dos Joy Division. "You're fucking wild", espantou-se Peter Hook. 




Foi exatamente a meio de um concerto de 22 canções que a metamorfose se deu: o que estava a ser um espetáculo recebido com carinho, mas bastante contenção, numa sala solene de lugares sentados, transformou-se subitamente numa coisa rock. Talvez não tenha sido subitamente: uma canção antes, aos primeiros acordes de "She's Lost Control", já a imagem do público pacato com um ou outro braço espetado no ar, seguindo o exemplo do de Peter Hook, tinha sido quebrada por um fã ensaiando uma dança "curtiana", e por duas amigas em furioso headbanging, como que ilustrando a narrativa da canção. Mas foi na 11ª música da noite, "Shadowplay", que a plateia do CCB perdeu a vergonha e se levantou em êxtase, fazendo sua a catarse da canção de Unknown Pleasures e não arredando pé da frente do palco até ao final do concerto. "You're fucking wild, aren't you?", espantar-se-ia Peter Hook antes da despedida com os hinos "Love Will Tear Us Apart" e "Ceremony". 

Até "Shadowplay", o concerto cresceu em lume brando. O Grande Auditório do CCB estava cheio de fãs de gerações diferentes, mas a maioria aparentava ter idade para poder ter vivido os Joy Division em tempo real. Embarcar neste "tributo" à banda de Manchester exige, por parte dos espectadores, um salto de fé: aceitar que, dos Joy Division, só Peter Hook resta em palco (e nem dá grande trabalho ao baixo, concentrando-se mais em cantar; para tocar está lá Jack Bates); entender que Peter Hook não é, nem nos parece que queira ser, Ian Curtis, e que esta noite teremos um concerto e não uma sessão espírita; querer celebrar as canções que apenas dois álbuns imortalizaram na história do rock, independentemente de quem as toca em palco. Ao primeiro tema, a impressão é ambígua: Peter Hook já tinha atuado em Paredes de Coura e na Casa da Música, mas esta é a primeira vez que o vimos e confessamos sentir alguma estranheza em vê-lo mergulhar, com timidez qb, num dos maiores clássicos da banda que hoje se propõe revisitar, "Atmosphere". A canção, como diriam os outros, ainda é a mesma, com a guitarra do muito elogiado Nat Wason a desenhar calafrios pelo pescoço abaixo, mas a voz de Hook, cujo carisma descomplicado desperta de imediato a nossa simpatia, não descola do chão. 

Curiosamente, em canções onde a catarse é mais flagrante e abre a porta à participação do público, como "No Love Lost" e "Leader of Men", que se seguiram no alinhamento, damos menos conta das limitações de Hook, talvez porque sintamos na sua entrega e linguagem gestual um real desejo de homenagear o fogo que animava (e consumia) os Joy Division. Ao longo desta primeira parte do concerto, como dissemos, a imagem que mais retivemos foi a dos fãs que, no meio da plateia sossegada, erguiam os braços para o céu, imitando o gesto de Hook. A energia acumulada de todos os que provavelmente já queriam abandonar as cadeiras foi-se tornando mais palpável ao longo de "Disorder", "Day of the Lords" ou "New Dawn Fades", mas seria realmente a sequência "She's Lost Control" + "Shadowplay" a mudar o rumo do concerto. Demorou, mas aceso esse rastilho, a energia na sala agigantou-se, contagiando a própria banda (um quinteto, com teclista) e "acordando" os seguranças engravatados do CCB. 

Antes do encore, impressionado pelo calor do público, Hook abeira-se dos fãs e toca para eles (ou para as câmaras dos seus telemóveis); precisamente uma hora depois de entrarem em palco, os músicos saem de palco para logo de seguida regressarem, com um singelo "obrigado" do nosso anfitrião. Bebendo do entusiasmo da segunda metade do concerto, o encore trouxe emoção ("Heart and Soul", "Isolation") e gratidão: sempre sem grande foguetório, Hook fez vénias, brindes, bateu palmas aos fãs. E alguns deles, durante "Twenty Four Hours", quase subiam ao palco. Ainda assim, o Prémio Coragem (ou Inconsciência?) terá de ir para o rapaz que, à entrada do segundo encore, batia palmas perigosamente empoleirado no "beiral" do camarote. 

Cá em baixo havia saltos, cabeças desgovernadas, uma loucura quase generalizada e boa de se ver, que as últimas canções só vieram alimentar. "Transmission", "Love Will Tear Us Apart" e "Ceremony" foram o trio do adeus, capaz de deixar os fãs com o coração em brasa (houve uma pequena comoção quando a cortina desceu sobre o palco, antes de os mais dedicados conseguirem o ambicionado alinhamento). 

Aos Joy Division, naturalmente, está associada habitualmente uma aura trágica que a história da banda fundamenta e o som reforça, ou vice-versa. Mas mal "Love Will Tear Us Apart" dá um ar de sua graça, a multidão (que de repente parece 50 vezes maior) irrompe num coro sôfrego, entoando o refrão mesmo antes que Peter Hook cante o que quer que seja. E logo a seguir, "Ceremony" despede-se de Lisboa com as mesmas "carícias malícias" no pescoço que "Atmosphere" nos dispensara à chegada. E nisto damos por nós a pensar que, mais do que o triste fim de Ian Curtis e da própria banda, incrível é como é que, em finais dos anos 70, quatro rapazes se conheceram para criar uma música que ainda hoje (ou sobretudo hoje) faz tanta mossa. É um daqueles mistérios que, acreditando-se ou não no dito, a palavra "destino" ajuda a explicar. 

Texto de: Lia Pereira 
Fotos de: Rita Carmo/Espanta Espíritos


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