quinta-feira, 26 de maio de 2011

América



América: O mundo ali ao lado
A América que se descobre no filme de João Nuno Pinto também é uma terra de sonhos num país de imigrantes. Mas é uma terra de sonhos perdidos, num cenário de claustrofobia à beira-mar, no bairro da Cova do Vapor, na margem Sul do Tejo. A ideia de um país encurralado entre o mar e o seu destino. Uma brilhante primeira obra, escrita a meias com Luísa Costa Gomes. Grandes interpretações de Fernando Luís, Dinarte Branco, Chulpan Khamatova e a última prestação no cinema de Raul Solnado. O filme dramático, que junta sem perder realismo comédia e tragédia. Porque também faz falta rirmo-nos de nós próprios.





Manuel Halpern

A América que se descobre no filme de João Nuno Pinto também é uma terra de sonhos num país de imigrantes. Mas é uma terra de sonhos perdidos, num cenário de claustrofobia à beira-mar, no bairro da Cova do Vapor, na margem Sul do Tejo. A ideia de um país encurralado entre o mar e o seu destino. Uma brilhante primeira obra, escrita a meias com Luísa Costa Gomes. Grandes interpretações de Fernando Luís, Dinarte Branco, Chulpan Khamatova e a última prestação no cinema de Raul Solnado. O filme dramático, que junta sem perder realismo comédia e tragédia. Porque também faz falta rirmo-nos de nós próprios. 





O seu filme tem a habilidade juntar sentimentos e perspetivas antagónicos. Tudo é trágico e tudo é cómico, sem perder o realismo. Como conseguiu esse equilíbrio? 


Há uma comédia na tragédia. O argumento original da Luísa era uma comédia. Eu fui introduzindo o lado da tragédia. O mais interessante para mim era o drama destas personagens e destas histórias. O que me atraiu desde início foi o lado mais burlesco que a Luísa faz bem. Quis manter o drama e a densidade desta história, sem perder um determinado humor, mais mordaz, que também faz parte da vida. 





Consegue isso em parte através da personagem central, a russa, que é totalmente trágica. Ela vem de um país hostil e descobre-se no meio de uma espécie de Kusturika à portuguesa... 


O lado interessante é o contraste entre uma seriedade e certos valores humanos que ela tem perante a vida e a estupidez, a incompetência, que é o lado mais português da coisa. Esse contraste tem a ver com as diferenças culturais, das várias nacionalidades que se cruzam ali. Sem dúvida que a Lisa é uma personagem muito sofrida. O drama dela é estar num mundo em que as regras são outras. É um papel muito difícil, está sempre prestes a explodir, no limite do desespero. Isso é contrabalançado com os outros, porque não queria fazer um filme completamente negro. Quis jogar com as emoções, a angústia e o riso. 





O lado burlesco é dado pelas outras personagens, que são uma espécie de 'cromos', mas são 'cromos' que facilmente reconhecemos. 


Sim, mas também eles vivem os seus próprios dramas. Explorados e exploradores estão perdidos naquele espaço, não há ninguém que veja uma luz. Até o personagem mais rocambolesco, que tem o papel do comic relief, que é o Matias, o brasileiro, no fim também está completamente encostado. 





Há ali uma outra personagem que força constantemente a saída, que é o Armando, o empreendedor. Serve como retrato de quanto é difícil criar coisa novas em Portugal? 


As personagens portuguesas acabam por estar tipificadas em certos comportamentos que têm a ver connosco. Desde o Vítor, que é o Chico Esperto, com muito pouca ética que acha que só os otários não enganam os outros. O Armando é empreendedor sem bases nenhumas. Ele nunca está satisfeito: quando enganam as velhinhas quer passar para os passaportes, depois quer passar para as burlas na Internet, mas obviamente nenhum tem a noção do que é a tecnologia. A ideia surgiu quando se dizia que o choque tecnológico iria salvar Portugal. O Melo representa o Portugal que está a morrer, o tipo que tem valores, que é um bom artesão... A avó Eulália, por seu lado, é o Portugal em agonia, que quer morrer, mas não lhe deixam. 





Os atores são muito bons. Parecem encaixar perfeitamente nas personagens, talvez por as personagens não serem demasiado abertas. Como fez? 


O grande segredo foi o casting, encontrar o ator certo para cada personagem. Todos eles fazem aquilo de forma muito orgânica. Mas houve uma grande preparação antes. Também tive sorte, porque aqueles atores fabulosos aceitaram trabalhar com um realizador desconhecido. A Chulpan é das atrizes mais conceituadas na Rússia. 






E foi a última participação de Raul Solnado no cinema... 


Para mim o Raul era o único ator que poderia fazer o papel do Melo. O que me atraiu foi ter o Raul num papel mais trágico. Se fosse um papel de comédia iria ser o Raul, assim é aquele personagem. Isso é que funciona. Ele acabou por não ver o filme. O filme ficou pronto em setembro e ele faleceu em agosto. E não foi o único, o ator espanhol, o Paco Meyer também faleceu entretanto. 





Este Portugal acaba por se transformar numa América de sonhos perdidos. 


É isso que está acontecer. Nós tínhamos uma população heterogénea, luso-descendente, com muita imigração africana. Hoje temos algo completamente diferente, pessoas que vêm do Brasil, Europa de Leste, Índia, China, Espanha... Era um retrato que queria fazer, Portugal está a ficar parecido com a América, um país formado por imigrantes. Há escolas em que metade dos alunos são filhos de imigrantes. Mas aqui quis colocar o ponto de vista numa imigrante. 





Assim rimo-nos de nós próprios. 


O que é importante. E verifica-se que, apesar de todo o tempo que passou, o filme está mais atual do que nunca. Porque fala de um país encalhado, em que as pessoas que estão não têm perspetivas. Que é que se passa hoje em dia, há uma depressão latente... e o filme ganhou ainda mais atualidade. 





A Cova do Vapor fica à beira mar, tem tudo para ser um sítio bonito, mas ali torna-se uma prisão, o que aumenta a ironia... 


A beleza daquela paisagem... Este mar que é tão belo e poderoso é também o que nos aprisiona. O mar representa a nossa glória passada, mas ali é ao contrário. Porque essa glória está ligada ao sair daqui, mas ali obriga-nos a ficar. Ela comparta-se como se estivesse numa ilha. No filme o espaço físico é uma representação do espaço psicológico das personagens. E cada vez que sai de casa está num labirinto de ruas e nunca consegue chegar. 





Quando finalmente encontra uma saída acaba por ficar presa por tudo o que não queria deixar para trás. 


É o que a prende o filme todo. Ela não é uma heroína, no sentido de fazer grandes feitos, a única coisa que ela quer é uma vida normal com a sua família. A criança de início não fala, mas é a personagem mais manipuladora. Se há personagem que sai vitoriosa do filme é mesmo a criança. 




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