sábado, 26 de junho de 2010

The National: O rock perigoso


Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos tomar drogas. Eles fazem as mulheres divorciar-se e os homens irem à farmácia buscar medicamentos. Os National são assunto de gente grande. E isso sim, é perigoso

Não é propriamente lisonjeiro para o rock'n'roll que a frase paradigmática que marca o início da sua história seja "A whop bop-a-lu a whop bam boo". E não deixa de ser sintomático que quem melhor a proferiu, Little Richard, fosse um homossexual que aí fingia ser um galifão com uma mulher em cada esquina.

Nessa maravilhosa canção traçou-se o caminho do rock'n'roll durante décadas: gente com esqueletos no armário transforma-se numa outra coisa que sempre desejou ou sempre achou que devia ser, e o sexo era laudado como objectivo único da vida. A mitologia transformou o rock'n'roll na banda-sonora do sexo, usando para isso todos os truques possíveis - menos palavras bem medidas.

Tivemos décadas disto e, acima de tudo, tivemos a mitificação "ad nauseum" disto, que atingiu o zénite quando alguém se lembrou de dizer que os Rolling Stones eram perigosos. Porquê? Porque faziam as meninas tirar as cuecas e punham os rapazes a tomar drogas. Destruíam os lares.

Não se duvida, mas falta acrescentar um pormenor: um pouco de literatura diz-nos que as meninas sempre foram céleres a tirar as cuecas, mesmo que sempre tenham sido magistrais a esconder essa sua excelsa qualidade. Em "O Cálice e a Espada", Riane Eisler fala-nos mesmo de sociedades mais próximas de regimes matriarcais em que o amor era livre e poligâmico. E recordando a "Medeia" será difícil sustentar que os lares só começaram a ser destruídos no dia em que as cachopas viram um sujeito de lábio de boi a berrar.

Que não se diminua o valor do rock'n'roll, tanto musical como sociológico. Mas que não se lhe atribua qualquer perigo - a explosão do rock na década de 60 é simples consequência da moral sufocante dos anos 50 que por sua vez é consequência da grande guerra. O rock estava no lugar certo no momento certo.

A questão é que para não se ser alinhado é preciso ter-se consciência do que está em jogo e para se ser rebelde é preciso - ao contrário do título do filme de Nick Ray - alguma causa. E isto implica inteligência e capacidade de usar as palavras.

Com a devida excepção do primeiro álbum dos Velvet Underground, isto só surgiu, no rock, no final da década de 70 com os Joy Division. Ian Curtis fez o favor de acabar depressa com qualquer veleidade intelectual que o rock pudesse ter e ainda assim dificilmente se poderá sustentar que os Joy Division não fossem uma banda adolescente. Os seus seguidores, com o suposto poeta maldito Ian McCuloch à cabeça, idem.

Andámos muitos anos assim até que os Radiohead conseguiram um feito extraordinário: fazer com que tudo na sua música, do uso de ruídos passando pela forma como o seu vocalista usava a voz ou as suas estranhas imagens literárias, se tornasse um símbolo da desagregação emocional que é marca do século XXI. Foi a primeira vez que o rock esteve próximo de ser adulto sem ser balofo (ao contrário, por exemplo, dos Pink Floyd).

É por isso que dizemos sem o mínimo pudor que os National são verdadeiramente a primeira banda de rock'n'roll perigosa que existiu ao cimo da Terra.

Todos os discos dos National são uma variação "ad infinitum" sobre aquilo a que poderíamos chamar "os indiferenciados": gente que se destaca pela sua absoluta falta de destaque, gente que não hesita em hesitar, que caminha passo firme para o tropeção, gente desconfortável com a sua temperatura, que não suporta o pouco peso que tem na vida dos outros.

Mas ao contrário dos Stones, as meninas que ouvem pela primeira vez os National não vão a correr trocar fluidos ou experimentar os simpáticos efeitos do Rohypnol. A descarga épica e emocional que os National produzem, associada à constante repetição de aforismos eficazes, levam a uma segunda atenção ao texto. E o texto, que à partida pode ser lido como simples confirmação de que a vida é por norma uma merda, revela-se de uma complexidade rara, abraça o erro, a queda e o disparate, sem nunca os glorificar (e isto é extraordinário no rock), comove-se por quem tropeça, não sabe se há-de ser hedonista e quando o é arrepende-se.

Isto é: está ideologicamente contra tudo o que os Stones representam. O discurso dos National é o da dúvida incessante, da culpa e do horror à culpa, do questionamento constante da ideia de identidade, do desdobramento constante das encruzilhadas que se apresentam ao ser humano.

Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos tomar drogas. Eles fazem as mulheres divorciar-se e os homens irem à farmácia buscar medicamentos. Pela simples razão de nunca ninguém no rock ter pensado tanto e de forma tão apelativa com Matt Berninger.

Os Stones sempre foram uma brincadeira de adolescentes da mesma forma que tomar drogas sempre foi brincadeira de adolescentes, mesmo quando praticada por adultos, se não for pensada, se apenas for hedonismo puro.

Ao contrário, os National são assunto de gente grande. É a diferença entre um tipo sentir-se um super-homem porque toma a droga X, ou aguentar as angústias e calar porque tem crianças para tratar. E isso sim, é perigoso, e agora sim, há perigo numa guitarra eléctrica.

fonte:
http://ipsilon.publico.pt/musica/texto.aspx?id=256173

1 comentário:

João disse...

"Todos os discos dos National são uma variação "ad infinitum" sobre aquilo a que poderíamos chamar "os indiferenciados": gente que se destaca pela sua absoluta falta de destaque, gente que não hesita em hesitar, que caminha passo firme para o tropeção, gente desconfortável com a sua temperatura, que não suporta o pouco peso que tem na vida dos outros."... Ora cá está uma grande verdade, colocada de forma directa e magistral.É mesmo isto...