domingo, 3 de junho de 2012

'Scary Monsters (and Super Creeps)' segundo Pedro Ramos


Publicado no Sound+vision

Este mês assinalamos os 40 anos do lançamento de Ziggy Stardust, de David Bowie. Mas como uma carreira não se reduz a um disco, pedimos a alguns amigos que escolhessem o “seu” disco de Bowie. Hoje apresentamos a escolha de Pedro Ramos, da Radar, que propõe um reencontro com Scary Monsters (and Super Creeps), de 1980. Um muito obrigado ao Pedro pela colaboração.

No momento de fazer a vénia a David Bowie, escolhi Scary Monsters (And Super Creeps). 

Olhando para o seu percurso, e sendo o primeiro álbum a surgir após a trilogia Low / 'Heroes' / Lodger, constrói aqui uma obra mais directa, conscientemente pop na sua génese, sem nunca perder o perigo e a esquizofrenia que sempre foram os trunfos maiores da sua composição. Aliás, arrisco-me a dizer que este é, de um prisma puramente psicológico, o seu álbum mais desafiante.

O arranque é extremo e instala o clima de paranóia que percorre todo o álbum. Um disco que nos recebe com a guitarra cyborg de Robert Fripp em duelo com uma voz feminina em japonês, traduzida por um Bowie mais interessado em rasgar as cordas vocais do que na busca da melodia. A canção chama-se It's No Game e aparecerá novamente no fecho do disco, num registo mais brando, como que gasta pelo cansaço no fim de um combate. 
E estas são canções de luta. 

Em Up The Hill Backwards, apesar de um refrão fácil, basta o título para transmitir-nos uma ideia de esforço, de alguém que tenta vencer uma força maior. Corre contra a ideia de um futuro junkie, contra os seus demónios que, mais alienados que aliens, ganham corpo na canção que dá nome ao disco.

Essa ideia surge glorificada em Ashes To Ashes, porventura a canção mais pessoal de Bowie, encarando de frente o Major Tom de Space Oddity, ridicularizando hábitos típicos da estrela rock que foi na década anterior e apontando o dedo às incertezas próprias de um veterano prestes a entrar numa nova década. Como na morte de Ziggy outrora, consegue cortar com o passado e virar a página. Naquela que permanece para mim como a sua melhor canção, fez do vídeo um marco de um novo psicadelismo Betamax, que daria origem a inúmeros clones MTV ao longo da década de 80. 
A relação de Bowie pela vibrante Nova-Iorque e o fascínio pela movida da mesma é óbvia em Fashion, especificamente na secção "dance with me / don't dance with me", quase amor-ódio, ao enfrentar a noite querendo ao mesmo tempo sobriedade. Precisa da vaidade e das luzes, mas percebe-se um desejo em passar de peão para observador, quase ao estilo de Warhol.

Rodeado por imitadores, de Gary Numan aos futuros novos-românticos, espalha veneno em Teenage Wildlife, mostrando uma séria intenção em recuperar o seu trono pop.

Scream Like A Baby é a canção onde mais sangue é derramado e transporta a mesma tensão de um protagonista aprisionado, com uma fuga em mente, embora a mera menção da palavra "sociedade" seja insuportável. "s-o-c-i-e---s-o-c-i-e-t…ssssss". É um hino bipolar, onde o fecho dos capítulos passados surge agora como uma questão de vida ou morte e onde a sanidade, por mais monótona que possa parecer, é a única opção que resta. 

Com Kingdom Come (original de Tom Verlaine) e Because You're Young (com guitarra de Pete Townshend) desenha o desfecho, em dois momentos mais melódicos onde começa a vestir uma nova pele, percebendo que o inimigo está mais fraco.

Quando surge finalmente a segunda versão de It's No Game, mais do que cansado no registo, Bowie está sereno, apaziguado. Seguro de que venceu.

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