Com “O Artista” e “A Invenção de Hugo” entre os favoritos, a noite dos Óscares tinha caminho aberto para uma viagem ao passado. “O Artista”, travesti de filme mudo a homenagear a Hollywood dos anos 20 e a época do cinema propriamente mudo, e “A Invenção de Hugo”, evocação “high-tech”, CGI & 3D daquele, Georges Méliès de seu nome, que com os irmãos Lumière foi o mais importante pioneiro da história do cinema, davam de borla a palavra-passe: “nostalgia”.
Os argumentistas e demais pensadores da cerimónia de entrega dos Óscares não a desbarataram, e usaram-na até para os pormenores – por exemplo na maneira de anunciar os nomes e os títulos nomeados para cada prémio, em “lettering” ao estilo de um intertítulo de cinema mudo. Certo: a “nostalgia” marca presença em todas as cerimónias de Óscares, altura em que Hollywood se sente na obrigação de reconhecer a sua própria, e riquíssima, história. Desta vez, ainda mais do que noutros anos, contudo, ficou a sensação de que essa história é um fardo, de evocação até algo desadequada numa cerimónia que tem por objectivo a promoção de filmes novos de qualidade frequentemente duvidosa.
Os “clips” da praxe, e uns bailaricos vagamente alusivos a uns quantos filmes de outras eras – coisa que estava para esses mesmos filmes assim como, sei lá, os “naperons” com A Última Ceia bordada estão para o quadro de Leonardo da Vinci. É “kitsch”, é folclórico – mas Hollywood tem este drama de não encontrar outra maneira de olhar para o seu passado, a que de resto a aclamação de “O Artista” não é fenómeno totalmente alheio.
Também por isso, pareceu uma cerimónia longa e, no entanto, apressada, tendência que todos os anos se acentua e resulta de um esforço frenético para manter os espectadores agarrados ao canal emissor – mas se a cerimónia, como espectáculo televisivo que é, se transformou numa batalha audiométrica (Oprah Winfrey, que fez filmes mas é uma figura da televisão, teve porventura a mais sonora ovação da noite...), não estará aí uma boa razão para repensar aquilo tudo de alto a baixo? É que precisava, e já nem Billy Crystal, de regresso à condução da cerimónia após oito anos de ausência, safa aquilo sozinho. Passaram por ele, pelo seu texto e pelos seus ad-libs, no entanto, as mais curiosas alusões a uma série de contradições do momento presente, espelhadas também no registo evocativo dos filmes de Hazanavicius e Scorsese. Mormente a transformação tecnológica em curso (ou já praticamente terminada), a passagem da “idade da película”, que se manteve relativamente estável por mais de um século, à “idade do digital”, transformação que é por certo a mais significativa desde, justamente, a chegada do sonoro. Uma alusão à falência da Kodak (“o auditório ‘Chapter Eleven’), e mais tarde, depois de um clip de um dos filmes mais famosos de Crystal (o “When Harry Met Sally” de Rob Reiner), esta frase que soou mesmo como uma “bucha”: “you know, that movie was actually shot in film”. A sala não tugiu nem mugiu, e o pobre Billy, por segundos, pareceu um homem completamente sozinho.
E os prémios? Bom, os prémios foram, de um modo geral, repartidos entre “O Artista” e “A Invenção de Hugo”, que levaram cinco estatuetas cada um. O filme de Scorsese arrancou melhor, porque ganhou sobretudo nas discutivelmente chamadas “categorias técnicas” – mistura de som, efeitos visuais, montagem, direcção artística e fotografia (ou “cinematografia”, na expressão inglesa, em qualquer caso designação que devia ser revista, chamar-lhe “imagem” por exemplo, porque o cinema resulta cada vez menos de um processo fotográfico).
“O Artista” não perdeu com a espera: estavam-lhe reservados três dos mais nobres óscares, melhor filme, melhor realizador, melhor actor (Jean Dujardin), a que se juntaram os prémios para guarda-roupa e partitura original. Foi, portanto, o “triunfador” da noite. A estatística diz que foi o segundo filme mudo a ganhar um óscar de melhor filme, depois do “Wings” de William Wellman na inaugural cerimónia de 1927. Mas a estatística é incapaz de perceber a diferença entre um filme mudo e um filme que finge que é mudo (e nem finge até ao fim).
O duelo entre “O Artista” e “Hugo” seguiu-se com alguma curiosidade: de um lado um filme francês a homenagear o cinema americano clássico; de outro, um filme americano a homenagear os pioneiros franceses que inventaram e abriram o caminho para o cinema como “arte popular”, ainda antes da sua industrialização. Como é que se desempatava? Desempatou-se privilegiando o olhar de fora para dentro – e assim, sessenta anos depois de terem salvo Hawks, Hitchcock, Ray, Fuller e etc, eis que os franceses vêm de novo em socorro do cinema americano, mostrando-lhe o caminho: para trás.”Os americanos premeiam os franceses, os franceses premeiam os americanos”
De resto, vale a pena mencionar que Spielberg foi de mãos a abanar com o seu medonho “Cavalo de Guerra”, filme mastodôntico que parece uma homenagem, por sua vez, aos anos terminais da Hollywood clássica, e àqueles pastelões que já só tinham o seu gigantismo para mostrar (mais Mervyn LeRoy do que Ford, seguramente, com a diferença de LeRoy parecer mais dinâmico e arejado ao pé da spielberguiana cavalgadura), e Terence Malick também mas já tinha sido premiado em Cannes (os americanos premeiam os franceses, os franceses premeiam os americanos: e pensar que ainda há pouco tempo diziam tão mal uns dos outros).
Meryl Streep, por “A Dama de Ferro”, ganhou o seu primeiro óscar depois de “A Escolha de Sofia” e Woody Allen, por “Meia-Noite em Paris”, levou o terceiro óscar para argumento original da sua carreira, coisa que tanto se lhe dá como se lhe deu (como é óbvio e natural, não pôs os pés na cerimónia). O Óscar de melhor filme estrangeiro foi para o iraniano “Uma Separação”, acontecimento que se tornou, independentemente dos méritos do filme (que são q.b.), o facto político da noite, certamente já a ser “lido” em Washington e em Teerão, quase de certeza de maneira completamente diferente.
Fez-se “justiça”? Quem ganhou mereceu ganhar, quem perdeu mereceu perder? Como se dizia no “Imperdoável” de Clint Eastwood, “’merecer’ não tem nada a ver com isto”. Nem com “isto” nem com os Óscares – e é importante não o esquecer.
Lista completa dos vencedores da 84.ª edição dos Óscares:
Melhor filme: O Artista, Thomas Langmann (produtor)
Melhor realizador: Michel Hazanavicius, O Artista
Melhor actor: Jean Dujardin, O Artista
Melhor actriz: Meryl Streep, A Dama de Ferro
Melhor actor secundário: Christopher Plummer, Assim É o Amor
Melhor actriz secundária: Octavia Spencer, As Serviçais
Melhor argumento original: Woody Allen, Meia-Noite em Paris
Melhor argumento adaptado: Alexander Payne, Os Descendentes
Melhor fotografia: Robert Richardson, A Invenção de Hugo
Melhor documentário: Undefeated, de Daniel Lindsay e T.J. Martin
Melhor curta-metragem documental: Saving Face, de Daniel Junge
Melhor animação: Rango, de Gore Verbinski
Melhor filme estrangeiro: Uma Separação, de Asghar Farhadi
Melhor montagem: Kirk Baxter e Angus Wall, Millennium 1 – Os Homens que Odeiam as Mulheres
Melhores efeitos visuais: Rob Legato, Joss Williams, Ben Grossman e Alex Henning, A Invenção de Hugo
Melhor direcção artística: Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo, A Invenção de Hugo
Melhor caracterização: Mark Coulier e J. Roy Helland, A Dama de Ferro
Melhor guarda-roupa: Mark Bridges, O Artista
Melhor curta-metragem: The Shore, de Terry George e Oorlagh George
Melhor curta-metragem de animação: The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore, de William Joyce e Brandon Oldenburg
Melhor banda sonora original: Ludovic Bource, O Artista
Melhor canção original: Bret McKenzie, Os Marretas
Melhor montagem de som: Philip Stockton e Eugene Gearty, A Invenção de Hugo
Melhor mistura de som: Tom Fleischman e John Midgley, A Invenção de Hugo