quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ainda Best Coast com Bethany Cosentino






Porque é que este conjunto de canções esgalhadas à guitarra em três singelos acordes e com uma voz feminina, a de Bethany Cosentino, um disco todo superfície, refracção brilhante do sol na chapa cimeira da água, nos alegra e comove tanto? Porque esta música representa um último Verão, uma última adolescência quando o Verão já acabou e a adolescência já passou. Mas "Best Coast", o disco, vai durar mais de uma estação


Há um cliché, muito usado por estes dias pelos nossos intelectuais, que diz assim: a internet fez com deixasse de haver tempo para reflectir, toda a gente reage instantaneamente, o mundo está perdido.
Bem, o mundo está perdido desde que o primeiro homem assolou à costa e demorou semanas a convencer a serpente a pôr uma palavrinha por ele junto à primeira mulher. E o diabo da bicha internáutica pode ser muito irritante, sim senhor.

Mas numa pequena parcela do universo binário, aquela relativa à música em mp3s descarregados à má fila, a internet deu-nos mais tempo.
Parece estranho? Não é: os discos saem cá para fora antes de serem editados oficialmente e ouvimo-los durante meses antes de chegarem às lojas. Na maior parte dos casos já nos cansámos deles quando têm preço e etiqueta. Numa ou outra excepção ficaram-nos na cabeça e tivemos oportunidade de pensar sobre eles, como tínhamos antigamente, quando nos juntávamos à volta da fogueira do vinil para ouvir cantar histórias.
No intervalo de tempo entre descarregarmos ilegalmente o disco de estreia homónimo dos Best Coast e a saída oficial do disco, uma pergunta assolou-nos: porque é que este conjunto de canções esgalhadas à guitarra em três singelos acordes e com uma voz feminina a lembrar as girls bands dos anos 60, um disco tão nitidamente escrito para ser todo superfície, refracção brilhante do sol na chapa cimeira da água, nos alegra e (quase) comove tanto?

Fomos alinhavando hipóteses: nostalgia, similitude com outras bandas que gostamos. Mas nostalgia de quê, se não éramos nascidos quando surgiu o surf-rock e as girl-bands? E de que vale a semelhança quando temos o original?


Depois Bethany Cosentino (vocalista, guitarrista, compositora e letrista dos Best Coast) fez-nos uma simples confissão cuja essência é um mote geracional: "Quando escrevi as canções não andava feliz". Houve ali uma ligeira pausa, como que para reflectir, embora possivelmente tenha sido para afagar o seu gato, ostentado na capa, e enfim a frase: "Andava confusa, a sentir que estava a ser manipulada numa relação, a pensar nas minhas relações passadas, a pensar o que fazer com a vida".
Ela diz isto com a mais absoluta inteireza, sem pose, tudo limpo. Não é um tratado ontológico, é um símbolo: daquilo a que o psicólogo americano Jeffrey Jensen Arnett chamou "Emerging Adulthood", a ambiguidade entre ser adolescente e ser adulto, aquela sensação de que aos quase trinta ainda não se assentou como se esperava de nós, e que mesmo quando se assume uma responsabilidade há sempre o quarto dos pais à espera.

Arnett tem estudado o caso ao longo das últimas décadas e defende que os vintes deviam ser vistos como uma nova faixa etária. A seu favor, mais que as suas pesquisas, tem a obra completa do cineasta Wes Anderson - e os maravilhosos Best Coast.
É isso que esta música representa: um último Verão, uma última adolescência quando o Verão já acabou e a adolescência já passou: aquilo lá fora é o Inverno e isto que é nada é a tua conta bancária. Mas enquanto não cortarem a electricidade, pode-se ouvir os Best Coast.

Nostalgia

Até ao início de 2010 ninguém tinha ouvido falar deles. Depois, uma canção aqui uma canção ali, à moda dos singles, houve palminhas primeiro, rumores a seguir e há uns meses, quando o disco todo fugiu pelas frinchas da legalidade, uma enorme vaga de clamores. De repente os Best Coast estavam em todo o lado, com um simples truque: Ramones sem a droga e com uma "afilhada" de Ronnie Spector ao microfone.
Beth recorda o momento em que a bola de neve se tornou demasiado grande para poder segurá-la: "A banda existia há um ano quando tocámos no South By SouthWest. Mas no festival as coisas começaram mesmo a rolar e a partir daí começámos a tocar muito ao vivo. Aí sim, foi tudo rápido, aconteceu da noite para o dia. Não esperávamos por isto, ficámos muito surpresos".

Ainda assim, assume que desde o primeiro dia foram muito falados, "para uma banda pequena, claro". Os amigos e os músicos que iam conhecendo "sempre [nos] aconselharam a gravar".
Não são como a maior parte das outras bandas: não são quatro amigos de infância que eram maltratados no liceu e quiseram vingar-se, não são um trio que quer papar garotas (apesar de isso ser respeitável). São um rapaz e uma rapariga, só.

Mesmo no processo de escrita não funcionam como a normal banda pós-adolescente que se reúne numa garagem e ensaia até à morte por sudação excessiva: "Escrevo as canções em casa, gravo para o pc, mando ao Bobb [Bruno], digo -lhe ao que quero que soe e ele depois faz as harmonias e arruma as canções. É tão simples quanto isto", remata.
Um ano antes, quando ela começou a banda, "queria soar às Ronettes e às Crystals", vontade que se devia "à [minha] condição emocional da altura". Mas depois "a guitarra e o Bobb interpuseram-se e as coisas seguiram o seu caminho natural".
A razão pela qual Bethany queria ser a Ronnie Spector de 2010 é simples: o seu passado.
"Cresci na Califórnia a ouvir Beach Boys. E quando digo os Beach Boys não me refiro só ao 'Pet Sounds', mas também aos primeiros discos. Os meus pais estavam sempre a ouvi-los e a tudo o que vinha da Motown. Fazem parte de todas as minhas memórias".
Bethany diz ser "muito nostálgica" e admite que boa parte dos seus dias (antes de dar concertos dia sim dia não) passava-se a "pensar muito no passado".
"Não só gosto de me lembrar do passado como gosto do que me lembra o meu passado". Daí a constante recordação de "toda essa gente que escrevia canções sobre rapazes e raparigas, tudo muito simples - bem, no caso dos Beach Boys às vezes era musicalmente muito complexo, mas as letras ainda assim eram simples".

Ela está tão ligada ao passado que quando vivia em Nova Iorque andava no metro a ouvir os Beach Boys "só para se lembrar da praia e afastar todo aquele negrume."
Nova Iorque só surgiu na vida de Beth já depois de ter andado a fazer música experimental com os Pocahaunted. "Não gosto de música experimental, de todo" - o que pode parecer surpreendente, tendo em conta que editou basta música com a banda. "Quando fazia essa música ia para casa a seguir aos concertos ouvir Bruce Springsteen e Billy Joel".
Esta ambiguidade, a do ainda-não-adulto, a do tipo que embarca nisto só para ver no que dá enquanto não tem mais nada para fazer, mas até gosta mais daquilo, parece grassar pela vida de Cosentino: foi actriz muito nova e depois voltou à escola, foi uma espécie de sucesso musical da net na adolescência, mas quando as grandes editoras quiseram contratá-la ela mandou-as à fava. Nada de responsabilidades, sff. É essa ambiguidade que ilumina estas canções.

Boy meets girl

É então que ela diz que "[no disco] é tudo muito adolescente" e nós retorquimos que não é adolescente, é "emerging adulthood", ao que ela não respondeu (e fez bem, é preciso não se ter muita cabeça para vir com uma expressão dessas).
Ela começou a escrevê-lo em Nova Iorque devido ao "negrume", depois de se juntar (musicalmente) a Bobb Bruno.
Não diminuamos o papel dele: o essencial, diz Beth, "as bases de guitarrra", é feito primeiro por ela, depois "o Bobb cria por cima" e o que ele cria não é pouco: linhas de guitarra surf-rock, uns ademanes à Jesus & Mary Chain, etc. Ela pinta a praia e o pôr-do-sol, ele pinta o barquinho.
"Há muita coisa pensada nas nossas canções, mas depois vamos experimentando tudo o que podemos. Nós só tínhamos uma semana e meia para gravar o disco, pelo que todas as ideias que tínhamos foram usadas. Não é como se pudéssemos estar um mês a fazer cálculos sobre o que entrava e não entrava".

Na cabeça dela estava tudo certinho: "Queria que fosse um disco que as raparigas gostassem. Elas vêm-me dizer no fim dos concertos "As tuas canções lembram-me a minha vida". Eu gosto disso, porque já estive desse lado".
Aparentemente moça sem demasiada poeira na cabeça, capaz de reflectir sem adornar as palavras só para encher chouriços, admite que o que escreve é, basicamente, "queria que gostasses de mim". "Para ser honesta não consigo relacionar-me com bandas como os Radiohead de forma tão íntima porque é tudo demasiado metafórico. Eu posso escrever sobre acordar com limões na boca, mas não ia acreditar no que estava a cantar. Eu canto sobre línguas na boca".

O que ela procurava com o disco é que "a música fosse revitalizante e desse vontade de dançar" - mas em fundo houvesse "uma tristeza nas letras". "É interessante quando se vai ouvir o que se está a cantar e é tudo muito triste, com solidão e separação e mesmo assim tem de se dançar ou cantarolar a melodia".
Se na adolescência ou se chora ou se dança, aqui dança-se e chora-se ao mesmo tempo, perguntamos. "Sim, é essa ambiguidade, é isso que gosto. Todos esses discos antigos de que eu gostava, dos anos 60, eram escapistas. E este, por ser tão solar e surfeiro, também se torna escapista".

Escapista é um termo por norma pejorativo, mas não nas regras de etiqueta de menina Cosentino. "Habituámo-nos a ouvir essa música como escapista e é essa a nossa resposta a este tipo de música. Eu gosto disso. Queria que quem comprasse o disco se lembrasse de praia. Mesmo que estivesse na cidade, durante o inverno e com chuva".
"Best Coast", o disco, vai durar mais de uma estação. Talvez depois fique na prateleira durante anos, mas um dia iremos tirar-lhe o pó e vamos ouvi-lo com um agrado raro, o agrado de quem já foi adolescente mas não exactamente assim e queria que tivesse sido assim, ou que tivesse percebido que as raparigas eram assim porque agora, com idade e distância, essa "assim" das adolescentes é comovente.

Quanto a Beth, duvidamos que algo a pare. Depois de colaborar com Kid Cudi, está numa de rap. "Ando a ouvir muito Lil'Wayne e Drake", diz, demonstrando o seu bom gosto. Perguntamos-lhe se era moça para colaborar com Drake e ela não só atira uma bela linha de Seinfeld como mostra que sabe ser marota: "I love the Drake. Fazia tudo com o Drake".
Gotta love Bethany Cosentino


Disponível em http://ipsilon.publico.pt/musica/texto.aspx?id=264812

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