domingo, 18 de março de 2012

Um Kubric em ácidos

Um cavalo a ser morto e cortado aos pedaços, assim começava a primeira longa-metragem de Gaspar Noé, carimbada com um título igualmente explícito, Carne (1992). A obra, de 40 minutos, percorreu festivais internacionais, entre eles o Fantasporto, e valeu ao realizador francês nascido em Buenos Aires o prémio da Crítica Internacional no Festival de Cannes. Noé tinha então 27 anos (hoje com 48), mas já fizera soar o alarme do que estaria por vir.

Voltaria ao certame francês pela segunda vez para apresentar Seul Contre Tous (1998), continuação da fórmula chocante do protagonista carniceiro e racista da sua primeira longa-metragem.

À terceira, concorreu à Palma de Ouro com o filme mais arriscado da competição naquele ano, Irreversível (2002), que terá feito desmaiar vinte espectadores durante uma sessão da meia-noite. A história, contada de trás para a frente, envolvia uma cena de violação anal em plano sequência de 9 minutos (como se se passasse em tempo real) com Monica Bellucci. E uma cena de espancamento com um extintor num clube chamado Rectum.

E em 2009 regressou a Cannes, pela quarta vez, para esclarecer, se dúvidas houvesse, que o seu cinema não é só provocação. Em Viagem Alucinante – chegou esta semana ao circuito comercial português –, Noé justifica mais do que nunca o seu estilo, dos enquadramentos desordenados vistos de cima (atravessando paredes, mergulhando e sobrevoando telhados e ruas) aos próprios ingredientes que o fazem integrar a lista de autores franceses do ‘Novo Extremismo Francês’: drogas, sexo, amores incondicionais, nascimento e morte. «A vida é assim, não?», riu-se em entrevista ao SOL, acrescentando: «O filme não é muito autobiográfico mas tem a maior parte das minhas obsessões».

Drogado e baleado

Em Viagem Alucinante somos transportados para o bairro red-light de Tóquio através do olhar de Óscar (Nathaniel Brown), um jovem americano a ganhar uns trocos como traficante de drogas. Mas a agitação néon da capital japonesa ganha outra dimensão se dissermos que em meia hora o jovem dealer é alvejado pela polícia sob o efeito de ácido e DMT (dimetiltriptamina, uma substância igualmente psicadélica) numa casa-de-banho minúscula de um bar chamado Void. É aí que começa a viagem alucinante construída por Noé, cujos efeitos especiais de ponta levaram à demora do financiamento do filme. E não precisou do 3D de Avatar, apesar de Noé ter gracejado que James Cameron «deve ter tomado as mesmas drogas» que ele.

O espírito de Óscar revisita os momentos chave da sua curta vida, como a traumática morte dos pais ou o seu próprio nascimento, tendo como iminente preocupação a promessa que fez à irmã (Paz de la Huerta) de cuidar dela até depois da morte.

Mas afinal, Óscar morreu e estamos perante um fantasma ou não passa tudo de uma trip? «É tudo um sonho, na verdade ele nunca saiu do seu corpo», responde Noé, esclarendo que a viagem é mental: «Uma trip de DMT pode parecer uma eternidade e na realidade só terem passado cinco minutos».

Um Malick pelo avesso

As leituras de pesquisa foram de Vida Após a Morte, de Deepak Chopra, ao Livro Tibetanos dos Mortos – directamente citado no filme –, mas Noé diz não acreditar na vida para lá da morte. Numa entrevista publicada na plataforma denofgeek.com explicou: «As religiões dizem todas que serás recompensado algures no céu, ou que se te portares mal vais para o inferno. Mas isso são tudo lavagens cerebrais para fazer as pessoas levar dinheiro à igreja».

Não é por acaso que Viagem Alucinante parece uma versão pesadelo do algo católico A Árvore da Vida, de Terrence Malick. «Vi-o em Cannes e gostei muito, a minha parte preferida são os três minutos iniciais», contou Noé ao SOL, lembrando que o seu filme foi feito antes e que as semelhanças vêm do facto de ambos os realizadores se terem inspirado em 2001 – Odisseia no Espaço.

O «filme seminal de Kubrick que muitos realizadores tentam reproduzir», Noé viu-o tinha apenas sete anos. E terá sido essa uma das motivações latentes para ter escolhido estudar cinema, em Paris, além do próprio pai, Luis Filipe Noé, pintor argentino que nos anos 60 defendia «o caos como um valor» num mundo moderno feito de incoerências. «Sempre quis ser como o meu pai, mas nunca quis competir com ele no seu campo de batalha. Mas se os meus filmes se parecem mais com filmes artísticos do que com os da indústria, isso é por causa dele», disse o cineasta, que incluiu as suas pinturas numa das cenas do filme.

As trips de pesquisa

A génese de Viagem Alucinante está em dois factos cinéfilos: uma citação de Kubrick «sobre 2001... ser um filme religioso em ácido» e o visionamento de A Dama do Lago, de Robert Montgomery, sob o efeito de cogumelos mágicos quando Noé tinha 25 anos. Ao jornal britânico Guardian o realizador disse que experimentou LSD quatro ou cinco vezes na vida e DMT outras tantas. Ao SOL, a quem disse ter sido «sempre cuidadoso» contou que a maior trip que viveu foi com ayahuasca, bebida produzida a partir de plantas amazónicas. «Fui ao Peru experimentar essa bebida, cheia de DMT, porque lá é legal. Fi-lo antes do Irreversível, já tinha este projecto em mente há muito tempo, quis experimentar por motivos de pesquisa».

O realizador lembra como nem todas as alucinações são feitas de drogas. Durante as filmagens em Tóquio, cidade que escolheu porque como em nenhuma outra do mundo os irmãos protagonistas pareciam «sozinhos dentro de uma máquina de pinball», teve alucinações com a luz do sol por excesso de trabalho e copos e falta de sono. Para não falar dos pesadelos todas as noites com as gruas das filmagens. E como exemplo mais extremo recorda a própria mãe: «Tem Alzheimer e está sempre a viajar, a vida pode ser mesmo uma má trip».

É por isso que não tem pudor em esticar os temas a imagens como a de um feto abortado ou de um pénis visto de dentro de uma vagina? «Para mim tudo isso é normal, puxei apenas os limites dentro do legal», conclui.

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