Após um ano de intervalo, “Dexter” está finalmente de volta, e mesmo que o primeiro episódio ainda não tenha trazido grandes novidades, soando mais como um interlúdio respeitoso aos acontecimentos bombásticos do final da última temporada, não pude deixar de notar como uma interessante premissa foi quase discretamente seminada ali.
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Ao lidar com a morte da esposa e com todas as condolências que envolvem a perda de uma pessoa amada e da família – cujas convenções sempre o deixaram desajeitado – era inevitável que alguém notasse a indiferença emocional de Dexter (neste caso, o detetive Quinn que, ao que tudo indica, fará o papel similar ao que foi de Doakes na segunda temporada). E é natural que, a partir daí, todos comecem a questionar o comportamento de um homem incapaz de demonstrar desespero no momento em que sua esposa foi assassinada na banheira de casa ou de chorar em seu funeral. E aí é que se inicia o que provavelmente será a grande premissa desta temporada: Dexter acabará sendo investigado justamente por um crime – provavelmente o único – que não cometeu, não porque haja indícios de que ele o possa ter feito, mas porque o senso-comum entra em alerta quando alguém não demonstra os sentimentos de compaixão que se espera.
Neste sentido, o drama de Dexter se aproxima diretamente do Mersault de Albert Camus em “O Estrangeiro”, um homem que encontra na indiferença emocional o único suporte possível diante de um mundo cuja busca de sentido é sempre fadada ao fracasso. Assim como Dexter, Mersault não chora no funeral da mãe e é incapaz de demonstrar o mínimo sinal de lamentação, nem mesmo quando, meio sem querer, mata um árabe na praia. Nem a morte natural ou a morte induzida (no crime) o afetam emocionalmente e por mais que seja um homem extremamente são, capaz de interagir e se relacionar com outras pessoas, sua indiferença o condena diante do julgamento alheio, engatilhado pelo senso-comum. No memorável trecho final do romance, o fato de não demonstrar emoção no funeral da mãe se torna a grande “prova” de sua culpa no crime e é condenado à morte (mas para ele, uma certa emancipação da prisão humana).
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Dexter também é um ser emocionalmente excêntrico, um “assassino sem culpa”, mas movido por sua própria ânsia em matar, tenta de todas as formas possíveis escapar de uma fatídica suspeita de sua segunda identidade (como na tensa e memorável segunda temporada). O que torna esta quinta temporada interessante, porém, é que desta vez nem mesmo a destreza de Dexter em limpar a cena do crime e esconder um corpo mutilado são garantias de que conseguirá se safar. O que foi exposto no primeiro episódio é justamente o seu irrefutável ponto fraco: seu emocional. Cedo ou tarde outros terão a mesma constatação do detetive Quinn de que há algo “errado” com Dexter.
Na sequência mais surpreendente do primeiro episódio, Dexter mata um homem apenas por ter sido um idiota grosseiro ao cruzar com ele. O assassinato foge radicalmente de suas tão rígidas regras, não só porque foi um ato imprevisto (algo que ele sempre foi tão competente em evitar) mas principalmente porque subverte os códigos de seu pai que ele assumiu com tanto rigor (matar apenas quem matou outras pessoas). Em mais uma “aparição”, seu pai, ao invés de reprová-lo por desobedecer suas regras, o sauda: “Essa foi a coisa mais humana que você fez desde a morte dela”.
Matar um inocente daquela forma foi o choro de Dexter, a sua descarga emocional possível, descontrolada e com nervos à flor da pele. Ele estava, de fato, sentindo o legítimo remorso, o arrependimento e a dor da perda. À sua própria maneira, tão peculiar, mas ainda legítima.
“Dexter” dialoga cada vez mais fortemente com o existencialismo (mesmo que Camus não se encaixe diretamente, já que recusava o rótulo), quando lembro de outro conto que marcou profundamente minha adolescência: “Erostrato”, de Jean Paul-Sartre .
Assim como também sempre foi de interesse na obra de Camus, este particular conto de Sartre disseca a identidade em crise; o embate da existência dominada pela dualidade, entre aquilo que se quer ser e o que é socialmente necessário. Porém, de forma bem mais brutal, a indiferença emocional de Paul Hibert, protagonista de “Erostrato”, provém do ódio e da repulsa pelo homem. Por vezes ele comenta como não suporta esbarrar em outras pessoas na rua ou como sente extrema repulsa ao ver homens mastigando, preferindo até assistir a refeição das focas.
Por mais que Dexter não compartilhe dessa repugnância pela humanidade (pelo contrário, ele até tenta, da maneira mais afetiva possível, fazer parte dela), ambos fogem da relação humana clássica – e, supostamente, natural e intrínseca- da “identificação ao seu semelhante”, e o paralelismo entre os personagens se torna mais pertinente quando notamos que o Paul de “Erostrato” diz que nunca teve relações íntimas com uma mulher, pois se sentiria sempre roubado e “devorado por suas bocas peludas”. Dexter na primeira temporada também não conseguia se relacionar sexualmente, já que se trata de um tipo de entrega física e emocional que exigia mais do que ele estava disposto (e ainda que nas temporadas seguintes ele já conseguisse ter relações sexuais, ele continua lidando com suas barreiras para realizar devidamente atividades cívicas e familiares comuns).
Matar um outro semelhante, tanto para Paul quanto para Dexter, é o que pode colocar seu emocional em fluxo, o ato que, de alguma forma, dá sentido às suas existências (embora Dexter já usufrua conscientemente disso e Paul apenas planeja o ato). O protagonista de “Erostrato” chega a dizer, numa das melhores passagens do conto: “…o que pode ser um homem que não gosta dos homens? Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revólver não tem mais que seis cartuchos.”
É irônico como Paul, que pareça tão austero e convicto em sua posição ideológica, falhe terrivelmente no fim do conto: seu tão planejado atentado se torna um fiasco e ele enfim se dá conta de como é fraco como todos os outros homens. Justamente o que Dexter não é, já que a fúria necessária para cometer um crime é canalizada de forma bastante disciplinar (sempre baseado nos códigos ministrados pelo pai) e o seu dualismo em ser também um homem comum, em administrar o afeto das pessoas a seu redor, ao invés de o condenar – como os personagens de Camus e Sartre – é o que o mantém equilibrado, são e centrado.
Não por acaso Dexter é um dos personagens mais complexos e interessantes da safra de séries atuais. Referências intencionais ou não, são questões existenciais como essas que nos fazem torcer para que série se mantenha viva por quantas temporadas possíveis. Nada mais fascinante do que ver um personagem que luta para parecer normal enquanto nós lutamos para entender como é possível simpatizar tanto por um serial-killer. Constatar que todos temos um lado obscuro nunca foi tão sedutor.
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