Triunfo na primeira noite da digressão europeia de Roger Waters com The Wall. Intimista e majestosa, noite no Atlântico encheu as medidas a público e artista. Foi grande e transversal, em termos geracionais, a romaria para assistir, ontem à noite, à primeira visita de Roger Waters a Portugal desde a atuação no Rock In Rio Lisboa, em 2006. Na altura, o músico sexagenário trazia consigo a digressão The Dark Side of the Moon (1973); desta feita, o chamariz foi The Wall , lançado seis anos mais tarde e um dos álbuns rock mais populares de sempre em Portugal, o que explica as duas casas cheias (o enorme Atlântico, em Lisboa, volta a receber Waters na terça-feira, 22 de março). O espetáculo erigido em torno do duplo The Wall , sabem-nos os fãs mais dedicados e os ouvintes ocasionais, é grandioso: ao fim da primeira música há um avião - réplica de um Stuka, bombardeiro alemão da II Guerra - que sobrevoa a plateia despenhando-se contra o muro e aí se "incendiando" (impõe, confessamos, algum respeito); há uma produção de palco espantosa, cativante e imaculada, e há também uma noção assumida, por autores e espetadores, da importância do disco e do concerto na história do rock. O que mais surpreende, no meio de um espetáculo que se poderia temer megalómano, é então o ambiente quase familiar e acolhedor do serão, com pais e filhos em harmonia, entoando todas as letras e exultando, atentamente, com o foguetório que ia sendo disparado do palco-muro disposto a toda a largura do Atlântico (a propósito: por uma vez a sala provou ser a melhor escolha para receber o espetáculo, não nos tendo nós apercebido das deficiências de som comuns neste local). Geralmente badalado pela sua conotação política, The Wall é agora, segundo o próprio Roger Waters, citado pelo Atual desta semana, "mais universal que a [produção] original", e à segunda música da noite, "The Thin Ice", surgem imagens do seu pai, Eric Waters, morto na II Guerra Mundial, tal como de civis anónimos (sobretudo do Médio Oriente) desaparecidos nos últimos anos. Na base de tudo, porém, está a viagem quase psicanalítica de Roger Waters, e mesmo no meio de toda a pirotecnia isso transparece. Na frente do palco-muro, trajado de negro (lá atrás esconde-se a banda numerosa e cumpridora), Waters apresenta o seu "bebé", The Wall , com orgulho e "savoir faire", mas também com a fragilidade de quem se debate, perante milhares de estranhos e por vezes até sem a "muleta" do baixo, com fantasmas íntimos. Por um lado uma gigantesca produção, com o muro a erguer-se durante o primeiro acto e a transfigurar-se no segundo, até à derradeira queda, o concerto The Wall é, ao mesmo tempo, a jornada interior de um homem alienado de um certo mundo e abrigado num outro, ora fantasioso ora distópico. Apesar da grande aclamação de "Another Brick In The Wall" (com as 15 crianças de uma associação cultural da Cova da Moura eufóricas em palco, a dançar e interagir com um dos bonecos de Gerard Scarfe), "Mother", "Comfortably Numb" ou "Run Like Hell", é complicado escolher os momentos altos de um espetáculo que flui com muita naturalidade e consegue ser tão impressionante, a nível visual, como tocante pelo seu conteúdo. Por exemplo: durante a inescapável "Another Brick In The Wall Part 2", Waters "estreia" dois solos de guitarra, enquanto um curiosíssimo efeito - uma carruagem de metro, qual interminável centopeia - nos implora a atenção dos olhos, percorrendo, veloz, o palco-muro. Segundos depois, é Jean Charles de Menezes, o brasileiro morto pela polícia londrina em 2005, a ser lembrado no mural dos desaparecidos, numa inesperada homenagem. O "ataque" aos sentidos, e ao coração, culmina na primeira interpelação de Waters ao público, simples e afável, lembrando os "inacreditáveis" 31 anos que se passaram sobre os primeiros concertos The Wall e apresentando a belíssima "Mother", na qual contracenou consigo mesmo, graças às imagens de uma atuação dos Pink Floyd em 1980 derramadas sobre o muro, em jeito de sombra. Foi um momento de grande intimismo - algo difícil de almejar a uma escala tão grande - e também de grande partilha, ampliada quando, à pergunta "Should I trust the government?", e a resposta se pintou garrida no muro: "No fucking way". Escusado será dizer que a multidão, com os nervos políticos em franja, se alvoroçou. Ao longo dos últimos dias, a BLITZ publicou aqui, no seu site, imagens de concertos da mesma digressão, mas é consideravelmente diferente ver ao vivo as pombas da paz a darem lugar aos aviões da guerra, ou sentir na pele o contraste entre a suavidade da música e as imagens agrestes de "Goodbye Blue Sky" (curiosamente, a "chuva" de Estrelas de David, criticada por alguns setores judeus, não pareceu incomodar o público, ao contrário das referências a marcas, prontamente apupadas). Embalados pela narrativa e pela construção do muro que, cada vez maior, torna as projeções ainda mais envolventes, chegamos ao intervalo, para o qual Roger Waters parte, cantando "à janela", "Goodbye Cruel World". 20 minutos mais tarde, o segundo ato, fortemente assente em ilusões de ótica que fazem o público crer no desmoronar do muro, quando os "tijolos" que o compõem se mantêm ainda firmes e hirtos, traz as muito aguardadas "Hey You", "Is There Anybody Out There?" ou "Bring The Boys Back Home", musicalmente épico e visualmente intenso, com fotografias de crianças desfavorecidas a comover a plateia. Invariavelmente atento e pouco dado a participações fora de tempo, o público português deixar-se-ia ainda conduzir por Waters no coro de "Comfortably Numb", maravilhar pelo anunciado porco insuflável e gritar o nome do seu herói ("Waters, Waters, Waters!") antes de este lhes dar permissão para, em "Run Like Hell", se "divertirem". Com jogos de palavras à volta do império iPod ("iRun", "iProfit", "iLose", ia-se lendo nas projeções) este foi um dos últimos "picos de corrente" do espetáculo, que terminou com toda a "equipa" na boca de cena - contámos 12 músicos, Roger Waters incluído - agradecendo a presença e a postura dos portugueses. "Quando escrevi [este disco] as pessoas não o respeitaram da mesma forma", disse Waters na despedida. "Mas nestes anos todos muita coisa mudou e nós não podíamos estar mais contentes por estarmos aqui esta noite". Pareceu sincero, emocionado e, à semelhança do concerto que ali terminava, emocionou. Missão mais do que cumprida. Texto de: Lia Pereira Fotos de: Rita Carmo/Espanta Espíritos Fonte: blitz |
Here are the young men, the weight on their shoulders Here are the young men, well where have they been?
terça-feira, 22 de março de 2011
Roger Waters no Pavilhão Atlântico, Lisboa
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