O segundo retorno de fim de carreira do realizador septuagenário Jerzy Skolomowski: uma lenda, plena de som e de fúria, sem nenhum significado, em queda livre até à pré-civilização
Ana Margarida de Carvalho
16:15 Quarta feira, 22 de Jun de 2011
É a jornada angustiante e (des)norteada de um homem encurralado - primeiro na paisagem lunar do Afeganistão com seus ardentes desertos e inquietas ravinas, depois na paisagem igualmente lunar, na florestas refrigeradas do norte, talvez na Polónia ou na Noruega, tanto faz. E também quase tanto faz tratar-se de um homem. Neste caso um Talibã, capturado pelos militares americanos, ensurdecido por um disparo de helicóptero, torturado e deslocalizado para estas paragens do primeiro mundo, onde a fuga e os assassinatos em série acontecem porque simplesmente se proporcionam. Diz-se um homem, podia tratar-se de uma daquelas raposas desorientadas, perseguidas pela algazarra da matilha de Beagles e estranhos seres de casaca encarnada montados noutros animais galopantes. Ou aquelas que preferem roer a própria pata para escaparem da armadilha. Este foge, porque sim. E mata, porque sim, também. Porque tem de ser, a sobrevivência é mesmo assim crua, silenciosa, brutal, selvagem, obstinada. E essencial, como diz a versão original do título, Essential Killing.
Este segundo regresso (Matar para Viver estreia-se quinta, dia 23) do veterano polaco, Jerzy Skolimowski, realizador e artista, depois de décadas de afastamento das câmaras -
o último filme foi o gélido, azulado e também cheio de instintos básicos 4 Noites com Anna (2008)-, pode parecer um thriller de perseguição, em que a presa se torna caçador. Aliás, é curioso o exercício de imaginar este filme feito segundo os cânones de Hollywood. Nas mãos de Skolimowski ele torna-se um thriller existencial, minimalista, em que o barbudo afegão (só sabemos que ele se chama Mohammed pelos créditos finais), não pronuncia uma única palavra ao longo do filme. Limita-se arfar, a gemer, a urrar, a tremer de medo e de frio, a matar a fome e as pessoas também a frio, a alucinar também no frio - pelos vistos também podem acontecer miragens em desertos gelados. É uma interpretação gutural, de uma fisicalidade absoluta, e que garantiu a Vicent Gallo o prémio de melhor ator no Festival de Veneza - aliás, o próprio filme saiu premiado.
Disponível para matar
Através de panorâmicas gerais, travellings aéreos, a exibir a pequenez deste animal ferido que vai deixando rasto na paisagem - a neve é um denunciante implacável para um fugitivo ensanguentado -, ou de planos subjectivos, com um design sonoro absolutamente notável e torturante (ou a estridência da banda sonora, ou as pás dos helicópteros, ou as grilhetas nos pés dos prisioneiros, ou os latidos dos cães, ou o grasnar dos corvos, ou o sopro inclemente do vento ou a música infernal de um auto-rádio...), o filme é apenas o retrato implacável de um homem e das suas circunstâncias. Fazer-lhe uma leitura politizada, aprofundar a controvérsia da guerra (daquela em particular e de todas), da cobertura que os países europeus deram aos americanos e aos seus métodos de tortura medicamente assistida está tão implícita que só empalideceria a história. Reduzido ao um estado primitivo, sem rumo nem direcção, está um homem em estado de pré-civilização, que corre sem GPS, não sabe para onde, apenas sabe que tem de correr e matar o que for preciso, de comer o que for preciso, casca de árvore, peixe cru, bagas... Amamenta-se de uma mulher como no livro de Steinbeck, As vinhas da Îra (aqui sem ternura nenhuma), também porque tem que ser. E prossegue a corrida visceral naquelas paisagens alienígenas para onde o levaram, a milhares de quilómetros de casa, tão desesperado como um King Kong em Manhattan. Sem planos, sem destino, ele apenas foge, acossado. Matas ou és morto: a absurda lei da vida.
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