Em mais uma noite chuvosa de Primavera, o Teatro Maria Matos não só encheu como se excitou para ver o regresso dos Magnetic Fields à capital (na véspera, haviam atuado na Casa da Música, no Porto). Uma hora antes de o concerto começar, já a sala lisboeta registava uma pequena enchente junto às portas do auditório, com os fãs da banda norte-americana a fazer finca-pé na busca dos melhores lugares, numa concentração humana que desde logo suscitou comparações jocosas com os acampamentos à porta de supermercados em promoção. Cinco em palco, os Magnetic Fields - "sort of", observou Stephin Merritt - corresponderam ao tom "picante" da audiência: ainda antes de a primeira canção se fazer ouvir, já o "dono" da banda, encasacado e com a habitual boina, prometia "tirar a roupa" se as coisas aquecessem. A sua pequena orquestra de pop de câmara não é, porém, dada a esse tipo de arrebatamento: com piano, violoncelo, viola, ukulele/cavaquinho e harmónio, Claudia Gonson, Sam Davol, John Woo e Shirley Simms dão minúsculos pontinhos num tecido leve e de cores fluidas, elegantes, com o grande quadro da música americana como fundo. Sobre estas telas vão desfilando histórias de vinganças femininas ("My Husband's Pied a Terre", inspirado numa história que Merritt viu no programa de Oprah e possivelmente a única canção do mundo a rimar "pied a terre" com "derrière", mas também "Your Girlfriend's Face", ambas do novo disco); vinhetas quase sempre sarcásticas e/ou surreais (entre canções, Merritt divertiu-se a imaginar que a estrutura sobre o palco iria descer sobre os músicos e raptá-los, qual bulldozer branco); histórias de um humor seco e acutilante (impossível não rir com o efeito trocista dos kazoos de Merritt em "Horrible Party") e ainda um bem-vindo regresso ao passado menos famoso de canções country/folk como "Plant Wild Roses" (da estreia de 1991) ou "Fear of Trains", com as vozes de Claudia e Shirley em bom destaque. Não obstante a atenção do público a todos os "passos" da banda em palco (não há aqui, naturalmente, coreografias ou pirotecnias a registar), e da boa receção emprestada às canções novas como "Going Back To The Country" - com um som admiravelmente cheio, não obstante a forma quase silenciosa como os instrumentos iam entrando em jogo - "Andrew in Drag" ("a banda-sonora do nosso novo vídeo", apresentou Merritt) e "Quick!", a fazer lembrar os Shins mais ginasticados de Chutes Too Narrow , o grande herói da noite tornou, inevitavelmente, a ser 69 Love Songs . Ainda e provavelmente sempre a grande obra-prima dos Magnetic Fields, o triplo álbum de 1999 ressuscitou, ontem à noite, pela mão do humor de "Chicken With Its Head Cut Off" e "Reno Dakota", da ternurenta "Come Back From San Francisco" e, sobretudo, dos hinos "Book of Love" e "All My Little Words", muito possivelmente as duas canções mais aplaudidas do serão. Merritt e amigos fizeram boas canções depois de 69 Love Songs (o álbum Distortion , por exemplo, foi ontem visitado com "Drive on, Driver"), mas é naquele manual megalómano que se encontram resumidas, de forma superlativa, as várias faces do génio do seu criador, da verve imbatível às melodias mais límpidas, passando pelos sintetizadores (ontem ausentes, mas em grande destaque no mais recente Love at the Bottom of the Sea ) e, está claro, pela ambição irrepetível e conceptual (nem o autor se lembra, já, a qual dos três discos pertence "Grand Canyon", que ontem também integrou o alinhamento). A finalizar o concerto, além da comoção que foi "All My Little Words", mostraram-se em palco as duas faces de Merritt: primeiro, a acidez de "Smile! No One Cares How You Feel", do repertório de outra das suas bandas, os Gothic Archies (com a animadora deixa "Everyone you despise will die, so smile" ) e o romantismo pouco ou nada cínico de "Forever in a Day", do musical nunca estreado Songs From Venus . É uma alternância de humores desconcertante, mas que nas mãos e nas deixas lacónicas deste cinco músicos faz todo o sentido: tal como faz sentido que passemos o concerto a atentar nas minudências que se cantam nestas canções - do amor, do acaso, da vida afinal - e que só no final, quando as luzes do palco se apagam e David Bowie começa a tocar no sistema de som, é que consigamos ter uma visão geral da pequenita catedral que, afinal, os cinco Magnetic Fields estiveram a erguer, à nossa frente, enquanto lá fora o céu desabava, mais uma vez. Texto de: Lia Pereira Fotos de: Rita Carmo/Espanta Espíritos Ler mais: http://blitz.sapo.pt/magnetic-fields-no-teatro-maria-matos-lisboa-texto--fotogaleria=f81144#ixzz1tnJrj8vl
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