terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os filmes de Stanley Kubrick em exposição no Eye, em Amesterdão

Post antigo e agora recuperado.
Publicado originalmente aqui


Quão belo e peculiar tem um espaço que ser para que nele estejam reunidos todos os trabalhos cinematográficos de Stanley Kubrick?

Muito, é a resposta simples, e foi certamente esse um dos factores que levaram à escolha do Eye Film Institute, espaço dedicado à celebração do cinema, para acolher a primeira retrospectiva internacional sobre o cinema kubrickiano. Não fica logo ali ao virar da esquina, ainda que era bom que assim fosse.

Localizado na ribeirinha zona norte de Amesterdão, a uma curta viagem de ferry de distância (não faz mal se não acertarem no ferry certo à primeira, podemos assegurar que não são os primeiros) por fora o Eye destaca-se pela maneira suave e pacífica com que fluem e se unem os seus ângulos obtusos, agudos e rectos, destacando-se na linha de um horizonte ainda em desenvolvimento urbano como um imaculado Concorde ou um Vaivém Espacial por estrear, em especial quando o sol se deixa escorrega por entre as nuvens. Espaço moderno, da autoria dos austríacos da Delugan Meissl, da sua planta destacam-se a esplanada exterior, perfeita para um brunch domingueiro ou um uma tarde solarenga e o belo e acolhedor anfiteatro interior, espaço voltado para a água e para o mundo estranho lá fora, que mais não é que a viciosa Amesterdão.

Na sua barriga, esta baleia branca de betão e aço acolhe a história do cinema, das películas mudas até aos filmes estrangeiros projectados ao longo de várias décadas por terras holandesas, sem esquecer é claro a protecção de todo o espólio cinematográfico nacional dos países-baixos, assim como um sem número de itens a si associados, como cartazes, postais, fotografias, adereços e películas em si.



Até dia 9 de Setembro, no entanto, o devido destaque do Eye vai para a obra de Stanley Kubrick, artista e mestre do cinema de um outro mundo. Encostá-lo ao simples título de realizador seria no entanto banalizar o seu esforço, a sua minúcia, toda a dedicação que colocou em cada um dos seus filmes, na filmagem, no plano tecnológico do cinema, em todo o seu exaustivo processo criativo.

Paris, Berlim e Melbourne já puderam ver Stanley Kubrick: The Exhibition. Infelizmente, o ilícito não esteve lá para conferir atempadamente a sua popularidade. Na capital dos Países-Baixos, a história foi diferente.

No dia seguinte à abertura ao público, que decorreu a 21 de Junho, pudemos finalmente conferir de perto a obra kubrickiana. Não que tenhamos estado propriamente em terrenos não cartografados. «2001: A Space Odyssey», «A Clockwork Orange», «The Shining» ou «Dr. Strangelove» não estrearam ontem nas salas de cinema, e qualquer aficionado que se preze, mesmo que pouco atento ou motivado, já pôs em algum momento os seus olhos nos fotogramas destes ou outros filmes do realizador norte-americano.

Antes de chegarmos a «Full Metal Jacket» ou «Barry Lyndon», a exposição começa por destacar o Kubrick fotógrafo, que durante a segunda metade da década de 40 apontou a sua objectiva à América comum numa série de trabalhos para a revista Look. Apresentando ao público a câmara original com que o fotógrafo amador se tornou no fotógrafo profissional, esta introdução destaca desde logo o contador de histórias que havia dentro do jovem Stanley.

Seguem-se os primórdios do seu cinema, com um espaço dedicado a «Day of the Fight», «Flying Padre» e «The Seafarers», mostrando-se como curtas de antecipação à sua primeira longa-metragem a sério, «Killer’s Kiss». Determinante não tanto na sua filmografia mas como processo de aprendizagem para os filmes que viria a realizar e pela moldagem da sua personalidade criativa, este foi um pequeno passo para chegar a «The Killing», película à partida encaixotada no simples género de “heist movie”, mas que pelo seu sucesso junto do público valeu a Kubrick a atenção dos estúdios de Hollywood.

Esta atenção valeu-lhe a sua primeira grande oportunidade à frente de uma produção de grandes dimensões. «Paths of Glory», realizado em 1957 é a primeira amostra do seu cinema em grandes dimensões, num patamar completamente diferente daquele que até aí havia produzido. Unanimemente considerado como uma das melhores transposições do campo de batalha para o cinema, especificamente da guerra de trincheiras presente na I Guerra Mundial, «Paths of Glory» marcou não só a carreira de Kirk Douglas, como colocou o nome do seu realizador nas bocas do mundo.

Nas salas dedicadas a cada filme, para além da projecção de algumas cenas marcantes são também apresentados documentários alusivos a cada trabalho, contendo entrevistas com os produtores, actores e técnicos que ajudaram a criar cada uma das películas, complementando a exposição e ajudando o visitante a criar uma imagem do que teria sido trabalhar sob as estritas ordens de Stanley Kubrick.



Seguem-se as salas de «Spartacus» e «Lolita», o primeiro um épico de estúdio, o segundo um trabalho de autor. Obras diametralmente opostas, de temas e sensibilidades bastante diferentes, demarcando o período em que Kubrick alterou a sua forma de estar no mundo do cinema, assim como a sua relação e (in)dependência dos grandes estúdios. Em «Lolita», o mundo é bem capaz de ter visto pela primeira vez um “filme de Kubrick”.

Imersos num mundo de cartas, telegramas, manuscritos, fotografias e fotogramas, seguimos o caminho pré-determinado, entrando no espaço dedicado a «Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb», filme estreado em 1964. Favorito pessoal de muita gente, nos quais nos incluímos, em «Dr. Strangelove» o mundo encontrou um espelho no qual se podia ver reflectido. Peter Sellers num momento de forma fenomenal e uma tenção narrativa crescente, entre muitos outros detalhes, fizeram desta sátira um marco na história do cinema. Tal como com muitos dos seus outros filmes, também este não escapou à polémica e à censura um pouco por todo o mundo. Portugal, na época sob o jugo da ditadura, não foi excepção, como de resto atesta uma carta presente na exposição. Datada de 25 de Maio de 1964, nela Kubrick é informado da proibição em exibir o filme por território português, não tendo sido dada qualquer explicação pelo censor. Acrescenta o responsável pela missiva: “It is the feeling of our own office that it is because of the political nature of the film“. Mais do que um feeling, uma certeza, acrescentaríamos nós. O espaço de «Dr. Strangelove» incluía ainda um modelo à escala da “war room“, ou sala de guerra, presente no filme, tal como diversas imagens da cena final cortada por Kubrick, em que o filme terminava com uma monumental batalha de tartes na dita sala.


Este modelo estava longe de ser a única peça presente. Por entre as peças originais e réplicas em mostra estavam diversos elementos do Korova Milkbar de «A Clockwork Orange», os vestidos usados pelas gémeas de «The Shining«, uma réplica à escala do labirinto presente no mesmo filme, assim como o feto ou “star child” e a centrifugadora da nave espacial de «2001: A Space Odissey». Em destaque ainda os sumptuosos vestidos e fatos de época de «Barry Lyndon», a máquina de escrever de «The Shining», e o duo espingarda/capacete do soldado “Joker”, em «Full Metal Jacket».




Da ficção científica e experimentalismo de «2001: A Space Odissey» à distopia e inquietação presentes em «A Clockwork Orange», nesta exposição, o visitante não consegue ficar indiferente, absorvendo intrinsecamente o ambiente criado pelos filmes, pelo diálogo das personagens e pela música presente. Do seu bucólico Barry Lyndon, filmado à luz das velas utilizando material fotográfico revolucionário aos diferentes tipos de terror e desgaste psicológico presentes em «The Shining» e «Full Metal Jacket», percorremos com calma e atenção a mente de Stanley Kubrick, até chegarmos ao seu último filme: «Eyes Wide Shut». Aqui, para além dos adereços e de fotografias documentando o processo de criação, fica patente a relação de Kubrick com os actores, pretendendo extrair deles a intimidade necessária para transpor para o grande ecrã de forma eficaz as dificuldades inerentes a uma vida familiar.

«Eyes Wide Shut» foi o último filme de Stanley Kubrick, mas não é o fim desta exposição. Num anexo algo recôndito, nem por isso particularmente visível a todos, os curadores daquele espaço haviam congregado dois trabalhos inacabados do mestre. Falamos de «Aryan Papers», o seu filme tematicamente ligado ao Holocausto, e no qual trabalhou afincadamente com a actriz Johanna ter Steege, até ao momento em que, movido pelo sucesso de «Schindler’s List» e desgastado pelo próprio tema abordado, Kubrick pôs término a todo o processo.

A outra película abortada era nada mais nada menos que a sua monumental biografia de Napoleão. As razões do cancelamento? Cansaço, as dificuldades em pôr de pé um projecto de dimensões assumidamente napoleónicas, e a incansável sede de perfeccionismo do próprio realizador, que pesquisou temas tão variados como as vestimentas da época ou os locais por onde teria passado Bonaparte. No final, o resultado foi um rascunho de um guião, que pode ser lido na internet, e uma edição literária documentando toda a pesquisa em torno do filme. O nome da edição? – «Stanley Kubrick’s “Napoleon”: The Greatest Movie Never Made».



O final da exposição não significa terminar a experiência Kubrick no Eye. Ao longo do dia, são várias as sessões em que o visitante pode sentar-se e apreciar qualquer um dos filmes deste artista ímpar na história da arte do século XX. Amesterdão não fica já ali, mas se por lá passarem, até ao dia 9 de Setembro, nada como dar o salto até ao outro lado do rio e comungar de alguns dos melhores momentos da história do cinema.



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