sábado, 14 de julho de 2012

'Estou Além', 30 anos depois

Publicado originalmente em Sound+vision


Passam neste mês de julho os 30 anos sobre a edição de Estou Além / Povo Que Lavas No Rio, o single que assinalou a estreia em disco de António Variações. Este texto foi publicado na edição de 11 de julho do DN com o título '30 anos depois, entre Braga e Nova Iorque'.

No início do verão de 1982 muitos guardavam ainda a memória de uma atuação televisiva no ano anterior, durante a qual um barbeiro, vestido de comprimdo, cantava uma canção em cujo refrão nos dizia “toma o comprimido, toma o comprimido que isso passaaaa”... Teriam de passar 25 anos até essa mesma canção surgir finalmente num disco (ver discografia em baixo). Porque, em julho de 1982, António Variaçõesassinala antes a sua estreia com outras duas canções, num single que poucos então imaginariam que se tornaria num marco na história da música portuguesa. Numa das faces do disco (em vinil, claro), ouvia-mos Estou Além. No outro, uma versão de Povo Que Lavas No Rio, um dos maiores clássicos da obra de Amália Rodrigues. 

Sem ele mesmo o imaginar, nascia um ícone. Um dos maiores e mais unânimes da cultura pop portuguesa. Nos dois anos seguintes, entre os álbuns Anjo da Guarda (que grava em 1983, em grande parte dos temas com contribuições de músicos dos GNR) eDar e Receber (de 1984, contando dessa vez com a participação de elementos dos Heróis do Mar) define uma linguagem muito própria que cruza uma escrita popular e quase aforística com um saber escutado nas memórias das romarias minhotas e um sentido pop assimilado entre viagens a Londres ou Amsterdão. De resto, a expressão “entre Braga e Nova Iorque” que ele mesmo usaria para descrever a sua música, respira o sentido de verdade como as que escutamos em letras suas onde nos diz “quando a cabeça não tem juízo / o corpo é que paga” ou “quem feio ama / bonito lhe parece”... 

Musicalmente António Variações era um homem do seu tempo. E a música que levou aos seus discos mostrava não só uma atenção pelas linguagens urbanas muito naturais em quem tinha em casa discos de David Bowie, Bryan Ferry ou Lou Reed, como um gosto pela música popular portuguesa e uma admiração maior pela figura e pela voz de Amália. Ao levar uma versão nada canónica de Povo Que Lavas No Rio ao seu primeiro single, António Variações dava um primeiro passo num processo de redescoberta do fado por novas gerações e outras músicas que, com os anos, revelaria depois o trabalho de nomes que vão de um Paulo Bragança ou A Naifa aos Deolinda. 

“Estou bem aonde não estou / porque eu só quero ir /aonde não vou”... Assim nos cantava em Estou Além, onde dava a entender um sentido de insatisfação que, apesar do tom festivo de muitas das suas canções, não procurava pontos de fuga sobre o que o deixava inquieto. 

Nascido em Amares, no Minho, a 3 de dezembro de 1944, mudou-se para a grande cidade aos 12 anos. Trabalha como marçano e depois lava pratos num colégio. Faz o serviço militar em Angola, passa por Amsterdão, mais tarde Londres. De regresso, em 1978, passa pelo primeiro cableireiro unissexo de Lisboa e abre depois a sua barbearia. É por essa altura que começa a compor. Em casa, improvisando para um gravador de cassetes, batendo palmas para sublinhar o ritmo... Assina pela Valentim de Carvalho, mas vai esperar algum tempo até ver um disco gravado. Música popular? Rock? O destino de António Rodrigues Ribeiro passa por vários responsáveis na editora, que o acompanham até mesmo a estúdio. Junta uma banda. Os Kamizke. Atua depois como António e os Variações. Com o tempo encontra o nome certo... António Variações. 

Morreu cedo demais, na madrugada do dia de Santo António em 1984. Com os anos nomes como Lena d’Água (a primeira a gravar temas inéditos), Amarguinhas ou Delfins criam versões de temas seus. Um tributo surgiu em 1993. Em 2004, outros dos inéditos que deixara em maquetes são gravados pelos Humanos. E 30 anos depois do primeiro disco, é força ainda vibrante e viva na música portuguesa.


Como complemento a este texto escrevi uma memória pessoal de uma das ocasiões em que falei com o António. Mesmo à porta de minha casa. Podem ler aqui esse texto, no site do DN.

Podem ver aqui o teledisco que então acompanhou o lançamento de Estou Além.

E aqui uma atuação televisiva ao som de Povo Que Lavas No Rio.

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