Os seus bailarinos varrem o palco como um furacão e no seu melhor documentário desde Buena Vista... ,Wim Wenders também foi tocado pelo sopro de Pina Bausch, numa semana cheia de "pina-acontecimentos"
Como na poesia, diz-se que cada poema é uma guerra. Nas coreografias de Pina Bausch travam-se batalhas em palco. Que não são necessariamente marciais ou disferidoras de munições. Mas cheias de energia bélica, confronto, raivas, angústias, muita perversidade e ironia. Outra vezes, apenas o lirismo em estado inteiro. Outras a alegria, também em estado inteiro. No documentário Pina (estreia-se hoje, dia 11), Wim Wenders recolhe o depoimento de um dos bailarinos da Tanztheater Wuppertal, que viu os seus músculos e movimentos moldados pela lendária Pina Bausch, ao longo de mais de 30 anos. Uma vez ela pediu-lhe para produzir o movimento que mais lhe sugerisse alegria pura. E era assim, perante o fumo pensativo do seu cigarro, por detrás da sua secretária de ensaio, com poucas palavras, e um olhar penetrante que Pina ia criando as mais espantosas coreografias. Com uma elegância espantosa, vinda de quem tem plena consciência de que está a filmar algo iconográfico, o filme apresenta excertos das famosas Sagração da Primavera, em que seres se agarram às barrigas e digladiam num placo coberto de terra barrenta, ou do Café Muller, quando as bailarinas cambaleiam de olhos fechados e os parceiros têm de derrubar as inúmeras cadeiras do seu caminho. E ainda todos aqueles movimentos rituais repetitivos tão bauschianos, cheios de cabelos e vestidos longos... Uma mulher que se convulsiona, e se encolhe como se tivesse um buraco na barriga, outra que se atira de cadeira e mergulha por entre os braços de um homem como um peixe, outra que oferece um vestido vermelho ao homem, num gesto sacrificial, à beira da cratera do vulcão. E por vezes são os movimentos incrivelmente simples, aqueles que emocionam mais.
Wim Wenders começou a rodagem pouco tempos após a morte imprevista de Pina, em 1999. O filme tornou-se necessariamente um tributo póstumo, mas tem pouquíssimo da mulher por detrás da obra, respeitando aquele olhar lacónico, discreto, de poucas palavras. Até aquelas dirigidas aos seus bailarinos de sempre eram escassas. Um deles imagina-a "como uma casa, com um grande sótão, cheio de coisas lá dentro". Palavras e emoções que ela traduzia em gestos, dança e música. E fica-se a pensar na quantidade de histórias, em toda a diegética, em quanta sintaxe pode conter um simples gesto.
Nesta casa imaginada pelo bailarino, Pina abriu janelas onde não havia sequer paredes. Daí, talvez, aquela corrente de ar que passava nas suas peças, às vezes monções (cheias de chuva e humidade), outras uma brisa romântica, outras uma ventania que logo amainava para se transformar a seguir num ciclone. O tão apregoado uso do 3D num documentário menos mainstream não é nenhuma cereja em cima do bolo nem nenhum artificialismo sensacionalista: é apenas um caso de eloquência. A sua câmara coloca-se no meio da tempestade, e sente-se o lado escultórico dos corpos, a profundidade e os vazios de uma representação teatral, a respiração dos bailarinos, os seus nervos a retesarem-se, o arrastar dos pés. E tudo flui - como uma aragem. Mesmo nos casos menos óbvios, quando Wenders transfere as coreografias dos bailarinos para cenários improváveis, como as ilhas de trânsito daquela cidade industrial, Wuppertal que Pina Bausch pôs no mapa, atravessada por um insólito monocarril. Ou numa piscina, ou em fábricas abandonadas. "Dancem, dancem, senão estão perdidos". E ficamos a pensar se teremos dançado o suficiente na vida. É isso que interessa. E o vento. Que dá também nos cabelos e nos vestidos das bailarinas. E aquela inquietação, inquietação. E isso é que é lindo.
Sem comentários:
Enviar um comentário