Só dançar é preciso
Os Harlem são das melhores coisas que o rock'n'roll tem para nos oferecer. Querem dar alegria a quem os ouve. Sem idolatrias: como nos diz Michael Coomers, eles não são assim tão importantes
Os Harlem, que vivem em Austin, no Texas, e que intitularam o seu segundo álbum "Hippies", apesar de não haver neles um grama de incenso "peace & love", são uma banda de guitarras. O impulso que os guia parece o mesmo que animava as bandas americanas que, depois de apanharem o turbilhão da "British Invasion", se enfiaram em garagens e, com meios precários, desataram a anunciar a libertação. São filhos do punk que dinamitou os pés de barro do mastodonte progressivo (e a "voice box" de Peter Frampton) para devolver a música ao povo.
Esclarecido este ponto, acrescente-se que os Harlem são, a par de Strange Boys e Black Lips, das melhores coisas que o rock'n'roll, arte de guitarras, tem para nos oferecer nestes tempos. Tudo reduzido ao essencial: uma batida e uma voz cantando sobre as coisas importantes da vida. No caso deles: romance em cemitérios, "strippers", cães de três pernas, "babys", outro tipo de alegrias e um par de irritações.
Ora, quando apanhamos Michael Coomers do outro lado do mundo, o vocalista, guitarrista e baterista (vai trocando de posição com o vocalista, guitarrista e baterista Curtis O'Mara; o baixista José Boyer não larga o baixo), dir-nos-á algo curioso. No seu discurso torrencial, com as ideias atropeladas pelo entusiasmo, exclama: "Há álturas em que gostaria de me livrar da porra da guitarra. Experimenta passear numa lixeira e de certeza que encontrarás, no mínimo, três guitarras. Se quiseres partir um côco e não tiveres nada mais à mão, pegas numa pedra grande. Com a guitarra é o mesmo". Depois fala-nos de música japonesa que ouviu recentemente, "completamente atonal, só címbalos, nada de guitarras" - está muito insistente neste ponto -, e de como adorou aquela novidade. E há-de acabar a dissertação com uma proclamação: "Adoraria ver uma banda nigeriana de sintetizadores. Dois gajos nigerianos e dois sintetizadores... Passaria o tempo a ver concertos deles. Seria tão bom, tão incrível."
Que possa existir algum tipo de contradição entre a banda que tem e as declarações acima nem chega a ser para Coomers uma questão a discutir. Tem uma certeza: "Queremos fazer música áspera e sem adornos" - e por isso, para gravar "Hippies", a banda recorreu a "um gajo que nem era produtor, era o gajo que carregava no 'rec'". Tem ódios de estimação: "Agora anda tudo com a conversa do 'há novos sons no ar' por causa da 'chillwave' [designação recente para bandas como Neon Indian ou Toro Y Moi]. Podem dizer que é um novo género, que são pessoas a arriscar, mas não passa de música terrível, horrorosa." E tem um método: "Queremos canções que soem como se as tivéssemos feito ontem - porque é exactamente o que fazemos". Assim nos aproximamos daquilo que torna os Harlem uma grande banda.
Estamos perto quando Coomers dispara uma provocação: "Não faço a mínima ideia como o Phil Spector fazia as suas canções. Não me preocupo com música o suficiente para que isso me interesse. Reajo a música da mesma forma que reajo a uma pintura. Se tem impacto, não me interessa se foi pintada a óleo ou com merda de cão. É uma pintura." Ora, os Harlem pretendem precisamente isso. Provocar uma reacção imediata: dar alegria a quem os ouve. Sem espaço para idolatrias. Como Coomers não se cansa de afirmar, eles não são assim tão importantes. E eis-nos por fim chegados à grandeza dos Harlem: talento unido a um total despojamento de ego. "Aquilo que nos diverte quando tocamos é ver as pessoas abandonarem-se ao momento, pegarem nos seus amigos e dançarem sem sequer olhar para o palco. A banda é quase secundária."
A "cena" de Austin
O primeiro álbum dos Harlem, "Free Drugs", foi lançado em 2008 numa edição de autor de 500 cópias que eles pensaram mais do que suficientes. Mas as pessoas reagiram àquele espírito efusivo e contagiante, as cópias esgotaram, a Matador correu a contratá-los e, agora que têm uma editora que lhes paga bons jantares, sentem-se como "a banda que invade uma festa indie para a qual não foi convidada": "Estão lá os miúdos ricos, todos a usar Chanel e nós aparecemos, despejamos refrigerantes sobre toda a gente e divertimo-nos até que, inevitavelmente, acabem por nos expulsar".
Os Harlem vivem em Austin, terra do festival South by Southwest, dos Strange Boys ou dos Black Angels. Nos últimos tempos, é habitual ouvir falar de uma "cena" na cidade, protagonizada por bandas ancoradas nas raízes do garage e do psicadelismo. Eis a famosa cena de Austin, descrita por Michael Coomers: "Ensaiamos na velha casa sem ventilação e cheia de gatos onde vivo. Os vizinhos são simpáticos e só alguns é que chamam a polícia. Há uma mulher que costuma entrar-nos em casa com a guitarra para 'jammar' e uma rapariga de 14 anos que vive ao fundo da rua e que põe sempre a nossa música a tocar quando passamos. É porreiro." Atentem no espírito de colaboração entre bandas: "O Ryan [Sambol, vocalista dos Strange Boys] aparece lá por casa de vez em quando, mas não vem de guitarra ao ombro para nos mostrar uma canção ou para tocar connosco. Quando o vejo, pergunto-lhe com quem tem andado a foder."
Pode ser que os Harlem façam depois uma canção sobre os casos de Sambol, pode ser que a ouçamos num concerto da banda. Claro que, para eles, tudo isso é secundário. Só dançar é preciso. Olhar para a banda não tem interesse nenhum.
Os Harlem, que vivem em Austin, no Texas, e que intitularam o seu segundo álbum "Hippies", apesar de não haver neles um grama de incenso "peace & love", são uma banda de guitarras. O impulso que os guia parece o mesmo que animava as bandas americanas que, depois de apanharem o turbilhão da "British Invasion", se enfiaram em garagens e, com meios precários, desataram a anunciar a libertação. São filhos do punk que dinamitou os pés de barro do mastodonte progressivo (e a "voice box" de Peter Frampton) para devolver a música ao povo.
Esclarecido este ponto, acrescente-se que os Harlem são, a par de Strange Boys e Black Lips, das melhores coisas que o rock'n'roll, arte de guitarras, tem para nos oferecer nestes tempos. Tudo reduzido ao essencial: uma batida e uma voz cantando sobre as coisas importantes da vida. No caso deles: romance em cemitérios, "strippers", cães de três pernas, "babys", outro tipo de alegrias e um par de irritações.
Ora, quando apanhamos Michael Coomers do outro lado do mundo, o vocalista, guitarrista e baterista (vai trocando de posição com o vocalista, guitarrista e baterista Curtis O'Mara; o baixista José Boyer não larga o baixo), dir-nos-á algo curioso. No seu discurso torrencial, com as ideias atropeladas pelo entusiasmo, exclama: "Há álturas em que gostaria de me livrar da porra da guitarra. Experimenta passear numa lixeira e de certeza que encontrarás, no mínimo, três guitarras. Se quiseres partir um côco e não tiveres nada mais à mão, pegas numa pedra grande. Com a guitarra é o mesmo". Depois fala-nos de música japonesa que ouviu recentemente, "completamente atonal, só címbalos, nada de guitarras" - está muito insistente neste ponto -, e de como adorou aquela novidade. E há-de acabar a dissertação com uma proclamação: "Adoraria ver uma banda nigeriana de sintetizadores. Dois gajos nigerianos e dois sintetizadores... Passaria o tempo a ver concertos deles. Seria tão bom, tão incrível."
Que possa existir algum tipo de contradição entre a banda que tem e as declarações acima nem chega a ser para Coomers uma questão a discutir. Tem uma certeza: "Queremos fazer música áspera e sem adornos" - e por isso, para gravar "Hippies", a banda recorreu a "um gajo que nem era produtor, era o gajo que carregava no 'rec'". Tem ódios de estimação: "Agora anda tudo com a conversa do 'há novos sons no ar' por causa da 'chillwave' [designação recente para bandas como Neon Indian ou Toro Y Moi]. Podem dizer que é um novo género, que são pessoas a arriscar, mas não passa de música terrível, horrorosa." E tem um método: "Queremos canções que soem como se as tivéssemos feito ontem - porque é exactamente o que fazemos". Assim nos aproximamos daquilo que torna os Harlem uma grande banda.
Estamos perto quando Coomers dispara uma provocação: "Não faço a mínima ideia como o Phil Spector fazia as suas canções. Não me preocupo com música o suficiente para que isso me interesse. Reajo a música da mesma forma que reajo a uma pintura. Se tem impacto, não me interessa se foi pintada a óleo ou com merda de cão. É uma pintura." Ora, os Harlem pretendem precisamente isso. Provocar uma reacção imediata: dar alegria a quem os ouve. Sem espaço para idolatrias. Como Coomers não se cansa de afirmar, eles não são assim tão importantes. E eis-nos por fim chegados à grandeza dos Harlem: talento unido a um total despojamento de ego. "Aquilo que nos diverte quando tocamos é ver as pessoas abandonarem-se ao momento, pegarem nos seus amigos e dançarem sem sequer olhar para o palco. A banda é quase secundária."
A "cena" de Austin
O primeiro álbum dos Harlem, "Free Drugs", foi lançado em 2008 numa edição de autor de 500 cópias que eles pensaram mais do que suficientes. Mas as pessoas reagiram àquele espírito efusivo e contagiante, as cópias esgotaram, a Matador correu a contratá-los e, agora que têm uma editora que lhes paga bons jantares, sentem-se como "a banda que invade uma festa indie para a qual não foi convidada": "Estão lá os miúdos ricos, todos a usar Chanel e nós aparecemos, despejamos refrigerantes sobre toda a gente e divertimo-nos até que, inevitavelmente, acabem por nos expulsar".
Os Harlem vivem em Austin, terra do festival South by Southwest, dos Strange Boys ou dos Black Angels. Nos últimos tempos, é habitual ouvir falar de uma "cena" na cidade, protagonizada por bandas ancoradas nas raízes do garage e do psicadelismo. Eis a famosa cena de Austin, descrita por Michael Coomers: "Ensaiamos na velha casa sem ventilação e cheia de gatos onde vivo. Os vizinhos são simpáticos e só alguns é que chamam a polícia. Há uma mulher que costuma entrar-nos em casa com a guitarra para 'jammar' e uma rapariga de 14 anos que vive ao fundo da rua e que põe sempre a nossa música a tocar quando passamos. É porreiro." Atentem no espírito de colaboração entre bandas: "O Ryan [Sambol, vocalista dos Strange Boys] aparece lá por casa de vez em quando, mas não vem de guitarra ao ombro para nos mostrar uma canção ou para tocar connosco. Quando o vejo, pergunto-lhe com quem tem andado a foder."
Pode ser que os Harlem façam depois uma canção sobre os casos de Sambol, pode ser que a ouçamos num concerto da banda. Claro que, para eles, tudo isso é secundário. Só dançar é preciso. Olhar para a banda não tem interesse nenhum.
fonte:http://ipsilon.publico.pt/musica/entrevista.aspx?id=257167
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